Soltando (PDF)




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Author: Zamzar

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Soltando a linha

Oriane Lima © 2016

Eu decidi escrever sobre a minha infância, um texto curto, enxuto, simples
e fácil de se ler. Primeiro escrevi sobre a historia do Papagaio ocorrido na
Ilha do Mosqueiro, que reproduzo no final. As lembranças se desenharam
com clareza e narro os fatos como êles vieram à memória. Espero que
alguém tenha paciência de ler. Todavia se ninguém correr os olhos por
essas linhas, não tem importância não... organizadas como estão expostas
aqui, eu mesmo vou ler de vez em quando estas memórias avivadas da
minha infância, da minha origem distante. Os fatos me colocam claramente
de volta ao lado, bem perto de Papai, de Mamãe e do meu querido irmão,
que já partiram...
Tudo se passou há 65 anos. A gente morava na Vila Importadora, em
Belém. A vila tinha um formato de um "L". A parte vertical, mais longa,
terminava em um terreno baldio, com algumas trilhas no meio do mato,
quase ninguém ia lá. À esquerda desta parte vertical ficava os fundos da
Paróquia de São Raimundo e um campo de futebol; havia um buraco no
muro por onde a garotada passava pra ir lá jogar bola. A entrada da Vila se
dava pela parte horizontal a partir de uma travessa.

A vila como ela é agora, 65 anos depois.
Ao fundo a Paróquia de São Raimundo

A vila em forma de “L” vista aérea atual

Em cada casa, um muro baixo com portão, um pequeno pátio acimentado, a
porta mais para a esquerda da faxada e a janela do quarto da frente à

direita. As casas eram parecidas umas com as outras, exceção feita pela cor
da pintura e algumas modificações executadas pelos moradores nas portas e
janelas. Não me lembro de carros circulando pela vila... a criançada ficava
solta, correndo e jogando bola de meia no meio da rua... ninguém
reclamava. Carro só o Jeep do Capitão Maia que morava na primeira casa
da esquerda, na entrada da vila. O capitão tinha uma casa na região de Val
de Cans com uma pequena piscina. De vêz em quando, eu e meu irmão,
éramos convidados para passar o dia por lá. Íamos de Jeep com o capitão,
sua mulher e sua filha que tinha a nossa idade 5 ou 6 anos.
Me lembro bem, morávamos na quarta casa à direita de quem entrava na
vila. Tinha uma sala, dois quartos, banheiro e cozinha... as janelas do
banheiro e do quarto de trás davam para um quintal de terra. Como um
alongamento da cozinha, um telheiro tipo meia-água, onde ficava um
armário de mantimentos e uma mesa para as refeições. À direita, o telheiro
era limitado por uma mureta que dava por meio de uma abertura para o
quintal onde havia uma tina de madeira, um varal estendido e um pé de
goiaba ao fundo. Um plástico era abaixado quando ventava ou chovia. Por
último, atrás do telheiro, ficava um quarto onde mamãe acumulava coisas.
O quarto era ventilado por uma janela que se abria para o quintal. O
telheiro e o quintal são fundamentais para se entender a história do leite
Moça e da visagem. Mas isso eu vou contar mais adiante. Antes, porém,
vou descrever um pouco de como eu me lembro daquele lugar e de alguns
eventos que ali ocorreram.
A rua da vila era movimentada quando os moradores saiam para trabalhar
ou quando a garotada ia para escola. Na maior parte do dia reinava uma
certa calmaria. De vêz em quando a paz do lugar era abruptamente
interrompida pelo ruído metálico cortante do amolador de facas, que
aparecia de tempos em tempos. Nós corríamos para ver as faíscas que saim
da faca passando no esmeril, anunciando sua presença.

Outras vêzes, me lembro bem, era o trac-trac-trac barullhento das matracas
dos vendedores de pirulito de puxa-puxa (quanto mais chupa mais puxa),
ou o blim-blim-blim do triangulo do vendedor de sorvete de raspadinha ou,
ainda, os berros esgoelados do vendedor de algodão doce: olha o algodão
doooce!

Pirulito de puxa-puxa

Raspadinha

Algodão Doce

Me lembro claramente. A paróquia de São Raimundo ficava por detrás da
vila. Foi lá que eu fui batizado. Me contaram depois. Ao final do batizado,
no momento de assinar o certificado de batismo, o padre falou: - "Mas este
menino não tem nenhum santo no nome!" Foi assim que, arbitráriamente,
acrescentou um José, não oficial, como meu primeiro sobrenome. Ainda
hoje tenho este certificado. Engraçado, ninguém acredita que me chamo
José. Para falar a verdade, nem eu mesmo.

Meu irmão era um ano mais velho do que eu, 5 e 6 anos. Nós estudávamos,
íamos para escola, aprendíamos a ler e escrever, aprendíamos a somar,
diminuir... pela tabuada antiga, etc...Mas nossa principal atividade mesmo
era brincar.
No quintal jogávamos bola de gude, Bola ou Búlica, o que significa tudo ou
nada. Hoje eu sei que este jogo tinha outros nomes, conforme a região. Os
nomes são muito engraçados e pitorescos: birosca, burquinha, berlinde,
búlica, bolita, baleba, bilosca, biloca, bila, birosca, boleba, bugalho, búraca,
búrica, bute, cabiçulinha, carolo, clica, peca, firo, guelas, pirosca, ximbra,
xingaua, quilica, timbra boleba, bolega. Fico imaginando, já pensou hoje
em dia se perguntar para alguém: "Tu sabes o que é uma pirosca ou, então,
uma quilica, ou ainda uma cabiçulinha?" Rio desse pensamento. Nós
jogávamos Bola ou Búlica com uma regra bem simplificada. Com a ponta
de uma faca, riscávamos um triângulo no chão de terra do quintal e cada
um colocava três bolas, aleatóriamente, dentro do triângulo. Andávamos
cerca de 5 passos para frente e fazíamos um risco, uma linha, no chão.
Posicionados ao lado do triângulo, jogávamos uma bola que era maior do
que as outras, em direção ao risco; quem conseguisse jogar a bola ou uma
bilha de aço redonda mais próxima do risco era o primeiro a jogar. De
cócoras, por detrás do riscado na terra, a bola era impulsionada pelo
polegar (forçando-a de encontro ao indicador) na tentativa de acertar e
retirar uma das bolas para fora do triângulo, em caso de acêrto ganhava-se
a bola retirada; em caso de êrro era a vêz do outro jogar. Se reiniciava, um
ou outro, sempre do ponto onde a bola maior havia parado depois de uma
jogada. O objetivo era acertar e levar todas as bolebas. O jogo demorava
porque não tínhamos muita fôrça nos polegares. O jogo da Bola ou Búlica
já não existe mais.

Bola ou Búlica jogo do Triângulo

Como eu disse, nossa vida mesmo era brincar! Colecionávamos estampas
Eucalol, que eram do tamanho de uma carta de baralho e vinham nas

embalagens do sabonete Eucalol. As estampas traziam temas com figuras
colorídas artísticamente desenhadas, ensinando sôbre a História e Lendas
do Brasil, Viajando pelo Brasil, os Índios, as Aves, os Bichos, as
Cachoeiras, a vida de Santos Dumont, etc"... Toda hora lavávamos as
mãos pro sabonete acabar logo!

Nós brincávamos de tirar par ou ímpar, de carrinho de lata, de montar o
castelo de madeira com sua torre de relógio e suas pontes, quando pronto
nós desmanchávamos tudo, só para repetir a montagem com um outro
formato! Ficavámos no pátio, por trás do muro disputando cuspe à
distância, ou então contar o número de pessoas que passavam: "uma, duas,
três," etc... Sentávamos no chão do quarto e jogávamos futebol de botão. A
bola fazíamos de miolo de pão. Brincávamos de ioiô... No quintal
lançávamos o pião, um objeto cônico de madeira, com uma ponta de metal.
Com a fieira enrolada a gente lançava o pião para êle ficar girando na terra.
Depois de muito tempo a gente conseguia.
Eu lembro, mamãe gostava de jogar paciência. A gente saía correndo pela
casa, até o quintal, ía e voltava para o pátio, fazendo barulho. Ela não
ligava. De vez em quando eu parava para olhar. Gostava quando
embaralhava as cartas com rapidez e com habilidade ia montando a
paciência. Nessa ocasião ela explicava um pouco o jogo; eu fingia que
entendia. Quando minhas tias, irmãs de papai, apareciam lá em casa,
botavam em dia as novidades e as fofocas. Então jogavam pifpaf. Eu
olhava e não entendia bulhufas.
Essas tias moravam perto, juntas com vovó Angélica num sobrado que
tinha uma longa escada com um corrimão marrom em dois lances. Gostava
de ir lá, ficava longo tempo na janela vendo o movimento na rua e
esperando o bonde passar. No desfile dos blocos de carnaval da janela
jogávamos confete e serpentina. Lá , da janela, vi pela primeira vez o

ônibus Zepelim passando lentamente na rua. Lá em casa havia sempre uma
visita de um tio ou tia, também minhas avós apareciam, uma hora ou outra,
o que animava a casa.

Ônibus Zepelim que rodavam nas ruas de Belém

Em um Natal nos foi dito que tínhamos de pendurar as meias na janela para
papai Noel colocar os presentes. Eu pedi um velocípede e meu irmão um
jeep de dirigir sentado. Eu dizia: "Como é que êle vai botar um velocípede
dentro de uma meia?" Êles simplesmente davam de ombro. Ceiamos e
fomos dormir. Custei a pegar no sono. Não acordamos cedo, as meias
estavam vazias, que decepção! Olhamos para o pátio... procuramos na sala,
no banheiro, na cozinha e nada. Os dois, sentados tomando café, só
olhavam. Passamos direto para o quarto dos fundos e nada. Aflitos
repetíamos "êle não trouxe nada, não trouxe nada"... Papai então disse:
"Vocês procuraram direito?" E completou: "Uma coisa tão grande não ia
caber mesmo dentro de uma meia! Vão procurar de novo".
Que nem dois lesos, refizemos todo o percurso, em vão. Faltava o quintal.
Corremos...e, do lado da tina, um lençol que nunca estava lá assim jogado
no chão, cobria os nossos presentes.

Um outro Natal foi pitoresco e cruel ao mesmo tempo. Fomos todos para
casa de vovó Onéglia, mãe de mamãe, para o almoço. Vovó morava numa
casa grande e com estilo bem antigo a pintura envelhecida, me lembro

muito claramente. Morava com um tio e a bisavó Laura. Gostava da bisavó
Laura, já estava bem velinha e frágil, quietinha em seu canto. Bisavó era
uma italiana bonita, de sobrenome Tabanelli, bem branquinha com lindos
olhos azuis. Todos tinham um grande carinho por ela. Eu gostava de
escutar o barulho das pisadas no chão de madeira, gostava da cozinha que
era bem espaçosa. Tinha um quintal bem grande com algumas árvores, um
galinheiro com algumas galinhas e um chiqueiro num canto onde morava o
Leco, o porquinho que eu e meu irmão ganháramos de presente. O Leco era
nosso! Chegamos e fomos sentando à mesa que já estava arrumada: arroz e
farofa, saladas, frutas, fatia-parida (rabanada), castanha, etc... Ao todo
éramos seis. Então vovó veio com aquela travessa grande com um leitão
assado todo decorado com alface, pedaços de laranja, etc... E colocou bem
no centro da mesa.

De pronto meu irmão começou a gritar sem parar: "é o Leco! é o Leco! é o
Leco!" Eu fiz coro com êle e corremos para o quintal com uma distante
esperança de que não era o Leco... uma eletricidade contaminava o
ambiente, uma espécie de curto-circuito comportamental e, numa reação
em cadeia, todos andavam de um lado pro outro, olhando um pro outro,
inquietos, aflitos por não saber direito o que fazer, como agir e o que dizer.
Do servido, ninguém tocou numa fatia-parida sequer. Na mesmo hora
voltamos para casa. No caminho nós repetíamos: "o Leco... o Leco... o
Leco..." Mamãe soube depois que vovó deu o Leco assado para uma
vizinha.
Nós andávamos em todos os lugares próximos, ao redor da vila. Naquela
época não havia violência. Violência zero!!! Assim ninguém se preocupava
por onde a gente andava. Nessa tenra idade, 5 e 6 anos, éramos livres para
ir e vir para aonde quiséssemos. Mas tínhamos sempre que comunicar:
"mãe tamos indo pra praça", etc...

A praça Brasil ficava distante cerca de dois quarteirões em linha reta saindo
da vila. Andávamos de baixo de grandes e frondosas mangueiras
enfileiradas na calçada, brincávamos de pular linhas, aqueles riscos e
rachaduras que sempre existem no chão. Quem pisasse numa linha perdia
um ponto.

O caminho da Vila até a Praça

No caminho parávamos na açaizeira... depois parávamos na tacacazeira...
dava água na boca... só olhávamos. O caldo do açaí é bem conhecido, o
tacacá não. Explico: o tacacá é feito com a goma da mandioca, camarões e
tucupi (líquido preparado a partir da mandioca braba) temperado com alho,
sal e pimenta, a que se adiciona jambu, erva com a propriedade de provocar
sensação de formigamento na boca. Mamãe comprava o tacacá já pronto
deixava esfriar e servia em cuias (fruto redondo da cuieira; cortado
exatamente ao meio, cada metade sem a polpa depois de seca é chamada de
cuia, um recipiente indígena apropriado para servir tanto o açaí quanto o
tacacá). Nós gostávamos de ir ao Ver-o-peso pra beber açaí e tacacá.

Tacacá na cuia

Açaí na cuia

Mercado Ver-o-Peso

Voltando à praça. Gostávamos de ir para a praça Brasil por duas razões
principais: pegar gafanhoto e jogar bola de seringa na grama. Para quem






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